Além do plano: a concepção das cidades-satélites de Brasília. Maria Fernanda Derntl. 2018.

Muito se sabe sobre o Plano Piloto de Brasília. Mas como a Capital inaugurada em 1960 e considerada uma das mais importantes experiências urbanísticas do século 20 teria concebido a ocupação de seu entorno? Neste trabalho, apresentamos resultados preliminares de pesquisa sobre a história da concepção e urbanização de Brasília, com ênfase nos traçados de suas cidades-satélites entre fins da década de 1950 e os anos 1960. Esse período foi marcante na definição dos rumos de seu posterior processo de metropolização. Como mostraram os trabalhos do geógrafo Aldo Paviani, Brasília tornou-se uma peculiar formação metropolitana, composta por um sistema urbano interligado, de caráter esparso e polinucleado, dominado por um centro, o Plano Piloto, com diversos assentamentos periféricos, as cidades-satélites (1).

Numa visão corrente, as cidades-satélites são tidas como a principal falha na criação da Capital e motivo de descaracterização da sua ideia original. A oposição entre um centro planejado, o Plano Piloto, e uma periferia desordenada, as cidades-satélites, é a tônica de muitos escritos sobre Brasília. Em livros gerais de história da arquitetura e do urbanismo, não é incomum que as cidades-satélites estejam associadas ao não planejado, ou a favelas. De fato, nos primeiros anos, os barracos de madeira construídos em ruas sem pavimentação e desprovidos de serviços básicos sugeririam uma paisagem similar a de favelas. Além disso, as cidades-satélites se desenvolveram de maneira muito menos controlada do que o Plano Piloto e receberam muito menos recursos em infraestrutura urbana. No entanto, como se procura ressaltar aqui, a concepção das cidades-satélites articulou-se a um esforço de direcionar a ocupação dos territórios do Distrito Federal e foi objeto de planos urbanísticos desde fins dos anos de 1950.

Na época da construção de Brasília, discursos produzidos por autoridades políticas e seus apoiadores enfatizaram a atuação do governo na criação de cidades-satélites, mas foram ambivalentes quanto a considerá-las parte intrínseca da Capital e do seu desenvolvimento. Em suas memórias, JK mencionou as cidades-satélites como “primeiros frutos da política de integração nacional” que ele vinha realizando a partir de Brasília (2). Na revista brasília, órgão oficial de divulgação do andamento das obras, Taguatinga, oficializada como cidade-satélite em 1958, apresenta-se, por ocasião da visita de JK em 9 de agosto daquele ano, como núcleo previsto para ser construído em época mais remota, mas, “circunstâncias imprevisíveis de uma calamidade nacional obrigaram a surgir como milagre da operosidade em 15 dias” (3). Uma versão similar a essa da criação de Taguatinga foi reproduzida na História de Brasília, de Ernesto Silva, diretor da Novacap entre 1956 e 1961. Silva reconhece ter encontrado “enorme resistência” por parte dos moradores que seriam transferidos ao novo núcleo, mas a atribui sobretudo à influência de comerciantes da Cidade Livre (depois Núcleo Bandeirante) para que a população permanecesse ali nas proximidades, com intuito de manter a lucratividade de seu negócios (4). Nessas narrativas de cunho oficial, Taguatinga aparece como obra do governo e resultado de uma condição excepcional – a seca no Nordeste que teria levado à imigração em massa – e não em sua origem conflituosa como demanda de moradores. Na edição especial da revista brasília de 21 de abril de 1960, data da inauguração da Capital, entre as poucas referências a cidades-satélites há fotos do hospital distrital e de escolas em Taguatinga. Ainda num dos últimos números da revista brasília, de 1962-63, as cidades satélites são mencionadas como “núcleos condizentes com a grandiosidade da capital”, num dúbio reconhecimento em relação com o núcleo monumental (5). Narrativas tradicionais da história das cidades-satélites, nas quais conflitos sociais e políticos são atenuados, persistiram até décadas depois da inauguração: Taguatinga, por exemplo, foi descrita em fins dos anos 1980 como “cidade nascida do idealismo, da fé e da confiança no grande destino da obra de Brasília” (6).

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